quinta-feira, 27 de março de 2014

A vida de cada dia


Tudo é silêncio.
Tudo, por um momento,
inquietante,
calado, surdo e paciente,
é ainda, porém,
envolvente
silêncio.

Assim, o silêncio,
por decretar com serenidade
a inexistência de quase tudo,
me parece 
insuportavelmente
belo e grandioso.

Um silêncio que, mesmo em sua natureza,
é capaz de brilhar aos meus olhos.
Uma verdade que é riqueza, fecundidade,
força doce e tolerante
como o próprio 
inquietante tempo.

Minha alma,
já não tão entristecida,
é com prodigiosa calma, 
quase uma perfeita
maquinaria de impavidez,
destinada a incluir tudo aquilo,
ponto a ponto, em nosso conto,
que procura atrair esse desejo da verdade
e recolocá-lo em questão 
contra todas as perguntas 
que ainda não fizemos.

Lá justamente 
onde o amor assume a tarefa 
de justificar a interdição
de todas as passagens,
que me servem de sinais,
significativos sem dúvida,
para o acreditar de cada dia.

Mesmo que sigamos,
sem compreender plenamente este silêncio,
que irá partir para a eternidade,
conforme um paradoxo que se desloca,
seu significado se renova e se apresenta
como uma rarefação, um suspiro,
um discurso íntimo,
sem palavras

...

para o mesmo novo sol,
para a mesma nova vida,
exuberante e pacífica,
de cada novo,
surpreendente, 
sempre o mesmo,
meu e seu,
sempre o nosso,
apenas mais um,
admirável 
e gracioso dia.



terça-feira, 18 de março de 2014

O que o tempo determina?

O que devo pronunciar hoje?
Ao invés de tomar a palavra,
serei, incondicionalmente,
envolvido por ela.
Não haverá, portanto,
nenhum compromisso,
nenhuma condição.
Não haverá, tampouco,
expectativas de outros,
nem minhas.

Daqui pra frente,
quero multiplicar tudo o que vou fazer.
Pois farei bem feito.
Comprometido.
Humanamente lúcido.
Que espere, o tempo.

Na harmonia suprema do meu
livre compromisso, atuarei sobre coisas
cuja existência seja, pois, explícita ou implícita.
Desde o asseio de todas as coisas
que toco, que amo detalhadamente,
em todos os meus lugares, até o movimento das minhas mãos,
dos meus experimentados dedos.
Começando pela pia da minha nova e sagrada cozinha,
até os menores espaços entre os meus cílios, entrementes,
entre os meus dentes.

Por todos os espaços que caminho,
é preciso continuar,
tocando, reparando, delineando
minhas ações, minhas dúvidas,
meus prazeres e dizeres.

É preciso pronunciar palavras enquanto as há.
É preciso dizê-las até que elas me encontrem,
até que me digam,
para que vieram.
É preciso, enquanto não estão aqui, escrevê-las.

Estranha falta, estranho castigo,
que cria o que ainda não aconteceu.
E que talvez já tenha acontecido.
Talvez eu já tenha dito, já tenha escrito.
Talvez não. Ainda não.

Eis mais uma hipótese
para que tudo aconteça.
Do começo ao fim.

Um começo e um final, solenes.
Cercados por um círculo de atenção e
outro de silêncio. Ritualizados,
sinalizando-os à distância.

Por isso, tudo o que vejo daqui é
arriscado, categórico e decisivo.
Mas ao mesmo tempo
transparente e calmo,
profundamente aberto,
desprovidamente indefinido.
Passageiro e infinito.

Assim, me deixarei levar.
Eu não teria senão de me deixar.
Pois, não temi começar.
Me ocorre por isso
ter algum poder
que só de mim advém.

Que o  meu silêncio, entretanto,
esteja alerta, e eis que, ainda,
uma ínfima separação permanece.
E é através dela
que o mundo se sustenta,
que o mundo se revela.

Ora, eis que um segundo adiante,
a verdade já não residirá mais
no que era o tempo, ou no que o tempo determina,
mas estará perpetuada,
pois já foi dita, já foi escrita,
tatuada,
em mim
e em mais alguém
a quem aqui
tudo isso,
tudo aquilo,
sem nenhum temor,
hoje pronuncio.

(inspirado pela alegria da música de Augustus Pablo).





sábado, 15 de março de 2014

Amor, Amor Sobre Tudo

O suposto anjo distorceu a verdade
quando imaginou que o demônio o quis ofender.
Quando na verdade não havia anjo, não havia demônio.
Quando na verdade ninguém desejou,
pois só o que havia era Amor.


Amor, amor sobre tudo, tu não és um mero afeto.
És, mais, a ação que nos faz existir, pois,
sem tu a vida se esvazia de si, 
e, assim, nada fica, nada sobra.
Tudo se ignora.

Como é difícil sustentá-lo longe dos paraísos, pois,
nossa natureza curvada não suporta o seu divino quilate.
O qual fica distantemente mais imenso, mais maçico,
quando nos encontramos no vazio que
o cotidiano instaura em nossos corações,
em nossas mentes, em nossas ações.

Ações que não resultam, que dão quase em nada,
ações que não acrescentam valores ao coração, à mente, 
à saude do corpo.
Portanto, disfuncionais.
Pois, são prematuras, superficiais e, por isso,
desprovidas de amor. Não amorosas, insalubres.

Amor, amor sobre tudo, 
quando da tua natureza nos distanciamos,
nos dissipamos em desejos que nos levam ao nada:
à eterna noite escura da alma.

Portanto, devemos amar.
Faça chuva ou faça sol, sob o luar sereno da noite límpida
ou sob o tempestuoso vento dilacerante: Amar. 
Essencialmente amar.
Mesmo quando
o pequeno amor esteja contido,
obscurecido, retraído
como uma pequena fagulha,
ao invés da chama.

Para que assim seja,
o que nos falta, as vezes, é uma afinação.
Um retorno ao paraíso 
de timbres e cores 
que perdemos aqui por perto.
Uma percepção mais amorosa,
por isso mais detalhada e
mais clara sobre tudo.
Um olhar mais simples
que é humano e alcançável.